sábado, 24 de março de 2012

A Mulher de Preto

Surgindo como uma ameaça por entre a montanha de livros acomodados ao lado da cama, os números vermelhos do relógio digital piscavam, lembrando-lhe intermitentemente a chegada já próxima de um novo dia. Passara a noite em branco como lhe era já familiar, já não tentava ler, ficava acomodada no escuro com os seus pensamentos como únicos aliados incondicionais e assim passavam as horas em que supostamente descansaria. Levantou-se, tomou dois dos comprimidos alaranjados, estrategicamente colocados na mesinha-de-cabeceira e dirigiu-se à casa-de-banho. Se ao menos pudesse afastar os seus demónios. Deixou que a água a envolvesse num abraço terno que nunca nenhum ser da sua espécie havia sido capaz de dar-lhe, como em relação a tudo, tinha expectativas desleais relativas ao poder de um bom banho, esperava poder lavar também o peso que a fazia arrastar-se pela vida que todos os que a rodeavam conseguiam, tão surpreendentemente, levar de forma leviana.
A escolha da roupa não foi difícil, o preto dominava por completo a palete cromática do seu guarda-roupa e não foi por isso um desafio esolher aquele vestido de aspecto mais conservasdor com que cobriu o corpo fatigado. Colheu com as mãos frágeis as chaves de casa e os óculos escuros, que se revelariam indispensáveis e saiu.
Lá fora o Sol magoava, tentou adicionar essa a todo o conjunto de desculpas possíveis para não ter de se encontrar com o destino mas acabou por desistir. Deu o primeiro passo em direcção ao mundo, não muito confiante, como nunca fora, mas com a força suficiente para que as pernas não lhe falhassem.
O percurso desenrolou-se sem paragens, as vistas da cidade de Lisboa sempre a haviam entediado, apressou o passo pensando se as pessoas a reconheceriam quando chegasse. Até que o tempo para dúvidas se esgotou, a Igreja levantava-se aos poucos no horizonte como um gigante há muito adormecido que espreitava para tentar captar o que perdeu durante o sono, até que se tornou tão alto que o topo da última torre era já inacessível aos seus olhos. Entrou pela porta lateral, reservada para este mesmo tipo de cerimónias, para que os devotos domingueiros não interrompensem o momento de luto daqueles que ali estavam por obrigação da morte.
Ninguém parecia reconhecê-la, haviam passado tantos anos que não esperava outra reacção que não a indiferença que aqueles que acompanham a vida têm para com os outros, todos os que se ausentaram e agora aparecem, no derradeiro momento, como que mais para descargue da consciência. Não existiram para si os pêsames habituais que se trocavam entre todos os outros "convidados", não houve ninguém a dirigir-lhe uma palavra amiga, não ouve ofertas de ombros onde chorar, não que o tencionasse fazer de qualquer das
maneiras. Sabia que não era seu direito.
Ao aproximar-se do caixão viu o mesmo olhar de reprovação que o pai lhe lançara na última vez que falaram, há 15 anos. Mesmo morto, estava insatisfeito, pela primeira vez compreendeu, olhou o corpo inanimado daquele que outrora lhe ensinara sobre a vida e teve vontade de lançar-se a ele, de lhe pedir desculpa pela sua ausência e pelos estragos que a sua presença havia causado noutros tempos. Mas já nada disso interessava. Debruçou-se sobre o pai e deu-lhe um beijo na testa, sinal de respeito nunca mostrado
em tempo útil. Virou as costas e afastou-se. Nada mais podia fazer. O tempo fora perdido.

três vestidos

Já tinham passado quatro anos desde a última vez que o velho homem tinha entrado naquele quarto, que fora em tempos passados destino de hóspedes passageiros, uma arrecadação de monos e que via agora o seu estatuto reduzido a divisão esquecida da casa. A própria porta estava perra e a maçaneta, feita de metal, enferrujada. Respirou fundo e entrou.
Caminhou com alguma lentidão e cuidado, entre tralha velha empilhada, que teria sido simplesmente atirada, coberta de pó e teias de aranha, em direcção a um velho armário, alto e castanho, com duas portas e três gavetas, trabalhado com grande cuidado, com figuras gravadas que retractavam cenas de caça e pesca. Uma prenda de casamento da sua tia-avó. Afastou um monte de livros perdidos e arranjou espaço na cama, que estava em frente ao armário. Sentou-se e mirou o móvel. O seu rosto era dominado pela infelicidade. Entre pensamentos e memórias que esvoaçaram pela sua mente, um sorriso aflorou os seus lábios seguido de imediato de uma torrente de lágrimas.
O sol, com a sua moleza e preguiça matinal, nascia muito pausadamente e longos mas tímidos raios solares entraram por uma pequena abertura da janela do quarto e tocaram-lhe o rosto. Passou com as mãos nos olhos e levantou-se. Uma vez mais respirou fundo e abriu as portas do armário.
Três vestidos. Três vestidos de cerimónia da mulher falecida. Um azul, um preto e outro branco. Qual escolher?
No seu bolso, o homem guardava uma moeda gasta e escura cujo valor era meramente sentimental. Fora a primeira moeda que recebeu das mãos do pai, depois de ser vítima de um truque tolo e inocente de magia. Tirou-a e sorriu. O truque tolo que o pai mais tarde lhe ensinou acabou por conquistar o amor da sua vida.
Escolheu o branco. Era o favorito da mulher.