terça-feira, 17 de abril de 2012

O outro lado

Escrito por Gonçalo Leal

Nós estamos do outro lado do amor, onde perdemos toda a chama que já não inflama de dentro. Aqui chegados, somos apenas o princípio de uma escuridão transmitida por abraços desprovidos de força. Tal como não te sinto, não me vês porque desapareci no espaço vazio do desejo esquecido. Voltarei a sentir-te minha no dia em que a este lado puder chamar a inocência redescoberta no final dos dias. Não morrerei sem regressar contigo ao lugar onde te devolva as intermináveis ilusões que se apagaram com a falta de oxigénio para gritar o que as veias distribuem pelo corpo todo. Ao contrário de hoje, temo que nesse momento já não queira partir para onde não me possas passar as mãos pelo rosto e sentir as lágrimas que provam a existência de algo maior do que a condição animalesca da sobrevivência. Será tarde demais. Talvez ainda consiga que leias nos meus lábios a palavra curta que expressa tudo o que em dentro de mim concedeste existência e que o tempo (ou a minha falta de coragem para ser homem) me impediu de te devolver. Não saberei como te levar comigo para o outro lado porque toda a luz te pertence e em mim apenas tenho o sopro do inverno que nada deixa aceso. Perdoa-me todos os dias que foste tu e tu sempre a reacender-te para mim e eu ignorei que podia haver um lado iluminado dentro do mundo que eu persisti em cobrir de nuvens escuras carregadas de falta de vontade de ser pouco mais do que nada. Será ao teu lado que sentirei a saudade de estar quando a minha imagem não for mais do que um passado que ficou para trás, desbotada pela humidade no fundo de uma gaveta. Regressa ao lado da vida enquanto ainda é tempo de a sentir completamente tua.

domingo, 15 de abril de 2012

moribunda, a casa.

E tudo o tempo levou. Infame e maldito, sem medo e sem pressas, levou consigo o que quis, quem quis, como e quando lhe apeteceu.
Foram-se as noites e dias de natal, em que a mesa onde cabiam dez servia quarenta ou cinquenta, mais vizinhos.
Em que as árvores de natal eram pinheiros mal cortados e roubados da terra do primo à última hora e o anfitrião da casa, o pai, era pior que os mais novos e roubava os relógios para antecipar a meia-noite, só para poder dar e receber as prendas.
Prendas essas, que por falta de dinheiro, limitavam-se a cartas e desenhos, a pedras pintadas, a bonecos de palha, trapos e caixas enormes sem nada lá dentro, no fundo, pequeno e adorável lixo, mas sempre muito bem embrulhado, porque o natal naquela casa era os embrulhos e os enfeites.
O pai natal de vermelho era lhes um estranho, pois não havia tanta comercialização do natal, e a filha mais velha quando ouvia sons no sótão durante a noite natalícia, que provavelmente eram ratos muito metidos na sua pacata e complicada vida, julgava que era o menino Jesus a descer pela chaminé com as prendas. E os enfeites eram algo de outro mundo, muito improvisados e um pouco aldrabados, de tons vermelhos e dourados. E as fitas, essas eram em farta e de toda a espécie, coladas ao tecto, coladas à lareia, nas cadeiras e nos móveis, eram tantas e de tantos feitios que mais parecia Carnaval do que Natal.
Foram-se os dias de Páscoa, em que vinha o padre com Jesus na cruz para se beijar, e que ninguém podia comer carne. Mas isto era tudo coisas da avó, a religiosa da casa. Os outros esperavam que ela fosse dormir, que chegasse a meia-noite e que acabasse o jejum de carne para se ir matar o porco e comer umas boas febras pela calada e às escondidas.
Foram-se também as grandes festas de aniversário, em que nunca se sabia bem quem era o aniversariante no meio de tanta gente. As jantaradas e almoçaradas aos fins-de-semana. A boa disposição, as anedotas porcas e às vezes labregas, e as outras muito bem pensadas, as palhaçadas e disparates, as partidas em que todos alinhavam, as loucuras, as confusões, as discussões e os conflitos resolvidos com abraços e terminados com o perdão.
Foram-se os bisavôs. O avô. A avó. Os tios, os primos, os cunhados. O pai.
Para trás, ficou a casa.
A casa e os que não morreram. Uma casa onde viveu gente, descansou gente, morreu gente e fornicou gente. Palco de algumas tragédias mas inúmeras comédias. Agora é de todos e não é de ninguém. Está abandonada, sem dono, quase esquecida. Perderam-se as chaves e as portas estão arrombadas de tanta vez que foi saqueada. Todos a querem mas ninguém luta por ela. Ficou decadente, moribunda, já não há festas, não há alegria. Há o nada.

domingo, 8 de abril de 2012

um fado mal contado

Ele vivia num mundo à parte, noutra realidade, noutra dimensão. Era um louco, feliz, gingão, fala-barato, tagarela, chato, sem papas na língua, de pensamentos bizarros, ideias anormais e paranormais, dançava na rua, vivia na lua, muito senhor do seu umbigo, sempre de ar leviano e nada contido.
Mas tudo o que é bom, não dura para sempre, e a sua vida deu meia volta, caiu no chão, bateu com a cabeça, foi esfaqueado nas costas, gritou de dor, riu-se de horror, fugiu com pavor e durante algum tempo, viveu sem esplendor.
Surgiu escondido na forma de um sorriso, que sempre lhe passara despercebido. Suavemente e devagar, pela calada, insinuando-se primeiro, inchando-se depois, todo arrogante, pimpão e presunçoso. Era amor. Era ilusão. Enfeitiçante como a lua cheia mas tão terrível como um exército pronto para a mais sangrenta das batalhas. Os dias tornaram-se semanas, as semanas meses. A batida era forte e insuportável. O sofrimento era desgastante. E o sorriso, traiçoeiro mas acolhedor.
No início, não percebeu. Não compreendeu. Era algo novo, estranho. Mas as passadas longas do tempo despertaram-no. O que para ele foi uma pena. Pensou, que fazer? Estava confuso. Pensou outra vez. Tinha a cabeça mil à hora. Mas finalmente parou.
Olhou e aproximou-se, sorrateiramente. Como se um cavaleiro disfarçado. O amor entrou pela porta da frente e a sensatez abalou pela porta traseira.
Calma mas irrequietamente, algum tempo demorou. Chegada altura, exibiu-se e não vacilou.
Mas não conquistou.
E da ilusão acordou.

Contou e recontou a si mesmo que nada daria errado, que seria esse o seu fado, os dois felizes, lado a lado. Só não tinha era percebido, que não passava nada mais de que um fado mal contado.
Ficou calado. Muito contido, deprimido, pelas trevas apoderado, tresmalhado do pensamento, demasiado baralhado. Chorou, chorou, tentou-se apagar mas deu um tiro ao lado. Ficou acamado, durante demasiado tempo para sequer ser mencionado.
No fundo, quem sabe o que pode ter murmurado, a si mesmo e à escuridão, nas amargas vigílias nocturnas, quando de repente viu todo o significado da vida a desaparecer como que num sopro, a sua própria razão de existência a perder o sentido, o acto de respirar a tornar-se inútil. Tudo encolhia, tudo perecia, e sem dar por isso, as paredes do seu quarto começaram a fechar-se sobre si, como uma arca encerando uma fera adormecida. Tudo se tornou sombra, tudo perdeu vida. Acender a luz? Qual luz? Essa há muito que estava apagada. Mas por muito que tenha custado, e que muitas primaveras tenham passado, lá se apercebeu de que se torturava por nada.
Foi despertado da sua amargura e aposentadoria por alguém ainda mais excêntrico que ele. Ela surgiu como a aurora, com uma boa nova. Radiante como os diferentes raios solares, suave, sorridente, calorosa, de olhos escuros como o breu, hipnotizantes, intoxicantes e apaixonantes. Veio galante, trazendo o cheiro de chocolate e o talento de tocar saxofone. De falas e gestos gentis, pura de interior e emanando felicidade, lá trouxe o rapaz, de volta à realidade.
Demorou um pouco mas a paixão lá chegou. Agora vinha verdadeira, com novo ar e melhor dom. Viu-se a luz renascida, um novo sonho, uma melhor vida. Há gargalhadas no ar, o sol a vibrar, há novo sorriso, com gritos de cor.
Vai-te embora desgraça, dá lugar ao amor.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

noite

Julgava ser meia-noite. Caminhava em direcção a casa de costas curvadas, ar abatido e de passadas lentas como se os meus sapatos levassem chumbo. As lágrimas que corriam o meu rosto, numa tentativa de exibir a minha infelicidade e severa tristeza, corriam disfarçadas pela chuva que se fazia sentir intensamente.
Aquela hora da noite, a rua não era segura. Drogados e prostitutas vagueavam pelo bairro. Mendigos abrigavam-se como podiam da chuva e montavam a sua cama de uma noite. Empregados de restaurante fechavam as lojas. E depois de um longo dia de trabalho, finalmente voltavam a casa. E eu, caminhava. Tinha rota e destino, mas não tinha vontade nem desejo, simplesmente queria deitar-me à beira de uma poça, de uma sarjeta, render-me a clichés de deprimidos e abandonados, chorar pela vida, gritar que todos me devem e ninguém me paga, culpar a sociedade, culpar pais, mães, culpar quem tem culpa e quem não tem, mas sobretudo, culpar o amor. Amor. Esse sentimento ridículo e sem graça. Irresistível num dia, impossível nos outros. Deixei os meus pés guiarem-me. Detestava lojas de conveniência mas encontrar uma era mais que conveniente. Perfeito. Uma garrafa de vodka, Martini. Qualquer coisa. Bastava-me isso, a estrada e um camião.

o velho do Restelo

Recordando os meus velhos tempos de estudante e também de rebelde, como podem comprovar com o próximo excerto, cujo o objectivo era descrever o Velho do Restelo, num exercício de português. Isto porque já não sou um mero estudante, vi-me promovido, e agora sou estudante universitário.

"Sem estando com particular interesse ou vontade para realizar este exercício, tendo em conta que estou apoderado por uma tremenda moleza e preguiça, dedico-me agora à tentaiva de partir pedra, tentar escrever o que me vier à cabeça, acreditando que algo de jeito irá surgir no papel. A imagem do velho do Restelo que surge na minha mente, é a de um homem magro sem dentes, com um ou dois cabelos na cabeça, e com uma barba branca maior que a do Santo Nicolau, o gordo de vermelho que nos dá prendas todos os Natais.
Apoiado na sua terceira perna, a bengala, a sua imagem é uma imagem que impõe respeito, medo, é uma imagem que transpira sabedoria. Á volta da sua sábia e rugosa cabeça, rodopiam umas quantas moscas, como símbolo da falta de higiene, algo típico daquela época. O seu discurso foi um discurso reprovador e conservador, defendendo o valor da família, da pátria. Escolheu as palavras de forma cuidada, ilustre, poética, deixando todos os que ali estavam, quer entendessem ou não a sua língua, espantados com a excelência do seu discurso. Aplausos surgiram, aquando do fim da sua argumentação contra os descobrimentos, e foi aclamado pelo povo, que ficou histérico, e nomeou-o Rei. Assim, nasce a nova dinastia, a dos Restelo, que durou 3 segundos, que o Velho, com tanta euforia, teve um enfarte e morreu."