domingo, 15 de abril de 2012

moribunda, a casa.

E tudo o tempo levou. Infame e maldito, sem medo e sem pressas, levou consigo o que quis, quem quis, como e quando lhe apeteceu.
Foram-se as noites e dias de natal, em que a mesa onde cabiam dez servia quarenta ou cinquenta, mais vizinhos.
Em que as árvores de natal eram pinheiros mal cortados e roubados da terra do primo à última hora e o anfitrião da casa, o pai, era pior que os mais novos e roubava os relógios para antecipar a meia-noite, só para poder dar e receber as prendas.
Prendas essas, que por falta de dinheiro, limitavam-se a cartas e desenhos, a pedras pintadas, a bonecos de palha, trapos e caixas enormes sem nada lá dentro, no fundo, pequeno e adorável lixo, mas sempre muito bem embrulhado, porque o natal naquela casa era os embrulhos e os enfeites.
O pai natal de vermelho era lhes um estranho, pois não havia tanta comercialização do natal, e a filha mais velha quando ouvia sons no sótão durante a noite natalícia, que provavelmente eram ratos muito metidos na sua pacata e complicada vida, julgava que era o menino Jesus a descer pela chaminé com as prendas. E os enfeites eram algo de outro mundo, muito improvisados e um pouco aldrabados, de tons vermelhos e dourados. E as fitas, essas eram em farta e de toda a espécie, coladas ao tecto, coladas à lareia, nas cadeiras e nos móveis, eram tantas e de tantos feitios que mais parecia Carnaval do que Natal.
Foram-se os dias de Páscoa, em que vinha o padre com Jesus na cruz para se beijar, e que ninguém podia comer carne. Mas isto era tudo coisas da avó, a religiosa da casa. Os outros esperavam que ela fosse dormir, que chegasse a meia-noite e que acabasse o jejum de carne para se ir matar o porco e comer umas boas febras pela calada e às escondidas.
Foram-se também as grandes festas de aniversário, em que nunca se sabia bem quem era o aniversariante no meio de tanta gente. As jantaradas e almoçaradas aos fins-de-semana. A boa disposição, as anedotas porcas e às vezes labregas, e as outras muito bem pensadas, as palhaçadas e disparates, as partidas em que todos alinhavam, as loucuras, as confusões, as discussões e os conflitos resolvidos com abraços e terminados com o perdão.
Foram-se os bisavôs. O avô. A avó. Os tios, os primos, os cunhados. O pai.
Para trás, ficou a casa.
A casa e os que não morreram. Uma casa onde viveu gente, descansou gente, morreu gente e fornicou gente. Palco de algumas tragédias mas inúmeras comédias. Agora é de todos e não é de ninguém. Está abandonada, sem dono, quase esquecida. Perderam-se as chaves e as portas estão arrombadas de tanta vez que foi saqueada. Todos a querem mas ninguém luta por ela. Ficou decadente, moribunda, já não há festas, não há alegria. Há o nada.

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