sábado, 16 de fevereiro de 2013

o homem mais impaciente do mundo


Falta-me algo. Qualquer coisa. Urgentemente. Não tenho bem a certeza do que é. Já tive, agora já não tenho. Quero e quero, mas não sei o que quero.

Eu poderia muito bem ser um projecto científico de alguém. Tanta instabilidade, confusão e ridicularização junta só pode ser inventada. Real? Internem-me então.

Do oito ou oitenta. Estou bem. Cinco minutos depois. Ainda estou bem. Dez minutos depois. Preciso de uma arma, tenho que matar alguém. Culpar os outros é sempre mais fácil.

Estou cansado. De tentar tudo e só conseguir nada. Sou um desequilibrado. Não me consigo adaptar a isto da sociedade. Um retardado em relações sociais. Esforço-me mais do que devia para parecer normal. Todas as minhas tentativas de entrar em sintonia com meio mundo, de ser menos estranho do que sou, falham disparatadamente. Quanto menos estranho tento ser, mais estranho sou. E ridículo. Vivo noutra época, noutro mundo, noutra rotina. É solitário. É uma merda. Bem que eu podia ser considerado um projecto científico de alguém. Acabo por parecer inventado. Uma personagem secundária da sua própria vida.
No final do dia, sozinho com o silêncio do meu mundo e com a barafunda da minha mente. Preciso de um pouco de juízo. Limites. Senão acabo morto numa sarjeta. 

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

o libertino idiota

A altura chegou a meio do quinquagésimo ataque de pânico. Os comprimidos deixaram de fazer efeito. O álcool deixou de ser cura. A droga deixou de ser antídoto. Reencontrar o amor deixou de ser solução. Como era costume, vestia o fato e sentava-se na grande poltrona que se encontrava no fim da sala. Respirava fundo, batia o pé, olhava em redor, contava pausadamente até cinco, assobiava Mozart e tentava-se acalmar. O fato deixava-o estranhamente mais confortável. Á sua frente visionava uma vida de solidão imensa e de alegria fingida. Antes tinha a desculpa e o porto seguro da missão que decidira empenhar. Mas ele sabia que a missão estava terminada. O seu tempo tinha chegado. Levantou-se, abriu a janela e empoleirou-se. Esboçou um pequeno sorriso, sincero, entre lágrimas e perdido da doença. "Boa viagem" murmurou a si mesmo. Olhou em frente. Deixou-se de cair.
E acordou.
Esta curta história não podia começar nem acabar com um suicídio se se quer contar a mais pura das verdades. Se bem que, suicídio é sempre dramático e apelativo.
Começa como todas estas histórias costumam começar. Bem. Ele saltava de um lado e para o outro. O seu histerismo e espécie estranha de bipolaridade eram já conhecidos e reconhecidos. Tal como a sua estranha necessidade de mentir para divertir. Também se podia dizer que era conhecida nos quatro cantos do mundo a sua faceta apaixonada, enamorada e feliz. A vida sorria-lhe e dava-lhe com fartura, mas por algum motivo cansou-se e deu uma reviravolta. Podemos realmente censura-la? Quem quer uma vida de fartura, se se pode ter uma vida de caos que é muito mais interessante e toca muito mais nos corações. Não interessa contar o que se passou apenas isto: entre desastres e desastres, a vida levou o nosso personagem principal para um hospital. Foi forçado a habitar esse estranho e supostamente esterilizado mundo durante dois dias. E entre contactos com outros pacientes, uns loucos outros só fingidos, teve a mais banal das epifanias. Beber. De regresso a casa instalou-se no sofá. Seguiu-se um regime louco. Dormia duas horas por dia, deprimia as restantes, disfarçando-as com exercício e bebida que o deixava moderadamente alegre e indubitavelmente estúpido. Um mês se seguiu a este ritmo, chegando ao ponto de ninguém perceber se estava ressacado ou mesmo bêbedo. Durante a noite, ia a festas, desenvolvia frases tristes e supostamente atiradiças que lhe reservavam as mais ingenuas ou as que se encontravam num estado semelhante ou pior ao dele.
Foi ameaçado pela família e pelos amigos para cortar no álcool. Não podemos dizer que ele era alcoólico  mas a situação estava a tornar-se decadente. Ele acenou e concordou, mas duas semanas depois voltou ao mesmo ritmo. Sucumbiu uma vez mais.
Ele merecia censura. Tinha deixado de tentar seguir em frente e deliberadamente encontrava o caos. Sentia que precisava dele. Queria se sentir mal. Queria ser masoquista. Queria a dor psicológica. Queria ser um coitadinho. Afastou a família e afastou os amigos. Beber, beber, beber e beber.
Hoje diz-se que anda ai perdido pela noite, sem ninguém, como um condenado por si próprio, como merece, como um libertino simplesmente idiota.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Inacabado.

Dois homens encontram-se. Um ainda a atravessar o vigor da juventude, outro velho, que há muito tempo se tinha despedido dessa fase de vida encantadora. O jovem trazia um bloco de notas e um gravador. Entraram numa pequena casa. Travaram uma pequena conversa de circunstância, falaram sobre o tempo, sobre desporto, sobre a crise económica, sobre assuntos e assuntos. A conversa foi fluindo e evoluindo de tom, perdendo o ar formal, ganhando um tique familiar e de troca de experiências:
 - Quem corre por gosto não cansa - disse pousando a chávena de café em cima da mesa.
- Sabes, até as pessoas que correm por gosto um dia se cansam. Quando, e se, esse dia chegar, devem atirar-se de uma janela. Ou de uma ponte. O método pouco ou nada importa. Ou então devem pedir a reforma e aposentarem-se na sua pequena e rústica casa de campo. Se não tiverem casa de campo que arranjem uma. Agora tu se tiveres que escolher entre estas duas opções, recomendo a segunda, não me apetece ser acusado de incentivar o suicídio.
 - Estás a ser demasiado generalista. Se eu ficar cansado de fazer uma coisa de que gosto, descanso e retomo no dia a seguir.
 - Eu falo da exaustão psicológica. Quando te cansares de fazer o que gostas, é porque deste o que tinhas a dar e se insistires em continuar a faze-lo, o que será bem provável, estarás a enganar-te a ti próprio. Falo de estares saturado. De deixares de gostar. Falo de te sentires ultrapassado. E por muito que te recomendem férias, vais insistir que é uma fase e vais insistir e insistir. O azar de quase todos nós, ou teimosia, o que lhe quiseres chamar, é que por mais conselhos que nos dêem, nós faremos quase sempre o contrário. Parece que gostamos de dar com a cabeça na parede. Diverte-me quando dizem que as pessoas são inteligentes, e que o ser humano é o ser racional. Somos todos controlados por sentimentos e emoções, pela vontade própria. Onde é que está a racionalidade? Se não fazemos o que queremos, sofremos até ao final dos nossos dias, com amargura, tristeza e arrependimento. E ainda torturamos quem está à nossa volta. Somos egoístas. Geralmente quando estamos mal, queremos que as pessoas saibam que estamos mal. E muitas são as vezes que decidimos partilhar o nosso mal com outros. Estou mal, tu estás bem? Então fica mal agora. Adoramos particularmente culpar os outros das nossas más escolhas e sofrimentos. Isto é maldade? Normalmente nem por isso, somos nós a reagir às coisas que não correram como queríamos.
 - Bem mas muitos não fazem o que querem e no entanto...
 - No entanto nada. A maior parte das pessoas não fazem o que querem. E vivem infelizes, vazios até ao fim dos seus dias. Tentam disfarçar essa infelicidade com festas, com saídas. Mas toda a santa noite, por melhor que o dia tenho corrido, vão chorar para cima da almofada, e mesmo que não se afoguem nas suas próprias lágrimas, lamentam as escolhas que tomaram e desejam voltar atrás no tempo. Vivemos rodeados de infelicidade, mete isso na tua cabeça. Os que fazem o que não querem, se são felizes é porque encontraram o amor, mas mesmo esse é um sacana traiçoeiro. Ou então tiveram filhos. Mas como já te disse, temos necessidade de culpar tudo e todos. No meu caso, cansei-me simplesmente de fazer o que queria. Deixou de me dar gozo. Hoje estou aqui, aposentado e sossegado, no meu pequeno refúgio. Escolhi a vida. É demasiado curta e fria para lhe virarmos as costas e desistirmos à primeira dificuldade. Agora estou calmo. Pacífico. Feliz com a minha vida? Nem por isso. Estou farto de tanta monotonia. Estou a pensar em preparar uma viagem a África, mas com as minhas manias de brincar com racismo, penso que seria imediatamente assassinado. Mas a verdade é que só me aposentei, porque senti que tinha chegado a minha hora. Eu estava farto e ultrapassado. E nem todos têm essa capacidade, a de reconhecer que chegou o seu momento. Há pessoas que parece que adoram agarrar-se ao passado. Por mais que não queiramos, todos caímos, todos deprimimos, todos choramos, todos sofremos, todos somos miseráveis pelo menos um dia na nossa vida. Venha de lá o gato mais pintado dizer o contrário. E muitas vezes acontece por vontade própria. Só não sofre quem se limita a viver a vida sem estar virado para os problemas e necessidades dos outros. É preciso tomates para isso. Eu nunca tive. Sempre achei que estamos aqui para nos ajudarmos uns aos outros, mas também para fazermos maldades, por mais simples e modestas que sejam. Ninguém gosta de paz durante muito tempo. É aborrecida. E não só, vida sem sofrimento também é monótona e enganadora. Faz-nos voltar à terra, cada vez que caímos. Sinceramente, eu acho que tive sorte. E mais que tudo agradeço a mim próprio e às minhas decisões. Tive amigos que lutaram e lutaram contra tudo e contra todos mas que não conseguiram o que queriam e foram espezinhados pela vida. Acabaram por desistir. Outros ainda tentam. Mas a sorte não lhes bate à porta. Eu tive a possibilidade de ser genuinamente feliz. E aproveitei e vivi extremamente bem. Mas cansei-me. Tornou-se demasiado desgastante. E agora aqui estou, sentado na minha cadeira a fazer o que nunca pensei que chegaria a fazer. Falar da minha experiência de vida, como se fosse muita. Dá-me vontade de rir. Tenho um humor estranho, mas divirto-me sozinho.
 - Viver tantos anos dá-lhe, inquestionavelmente, experiência de vida.
 - Isso foi a maior barbaridade que já disseste. Eu podia chegar até aos 150 anos e não saber nada de nada da vida. Fui-me safando e tive sorte. Tive pais que me adoraram mas que me acomodaram, tive uma infância facilitada mas feliz. Acomodei-me algumas vezes na vida e paguei caro. Muito caro. Mas aprendi com os erros. Consegui corrigir alguns, outros ainda estraguei mais, como tudo. Agora experiência de vida? Nem por isso. Acabo por ser um mero observador do mundo que o rodeia, um homem que se contraria facilmente, um homem infeliz mas que em tempos foi feliz. Mas de pouco ou nada me arrependo. Isso custaria tempo, que tenho, mas que prefiro gastá-lo a ver programas de baixo custo na televisão, ou a falar com os meus vizinhos sobre os problemas dos outros. Acima de tudo, deixei o extraordinário para trás porque estava velho e cansado e tornei-me algo que nunca pensei em tornar-me, mas que era a única hipótese que eu tinha. Tornei-me banal. É o que espera a quem sabe que chegou a sua hora. Agora espero o fim, muito sossegado, na minha vida pacata e mundana, para poder recebe-lo de braços bem abertos e para o abraçar. Depois, depois acabou. Serei um vulto na história. Alguém esquecido. Mas o pequeno papel que eu tinha na vida e no mundo, de mero peão de peões, desempenhei-o. Agora sou um peso. Mas não o serei por muito mais tempo.

terça-feira, 17 de abril de 2012

O outro lado

Escrito por Gonçalo Leal

Nós estamos do outro lado do amor, onde perdemos toda a chama que já não inflama de dentro. Aqui chegados, somos apenas o princípio de uma escuridão transmitida por abraços desprovidos de força. Tal como não te sinto, não me vês porque desapareci no espaço vazio do desejo esquecido. Voltarei a sentir-te minha no dia em que a este lado puder chamar a inocência redescoberta no final dos dias. Não morrerei sem regressar contigo ao lugar onde te devolva as intermináveis ilusões que se apagaram com a falta de oxigénio para gritar o que as veias distribuem pelo corpo todo. Ao contrário de hoje, temo que nesse momento já não queira partir para onde não me possas passar as mãos pelo rosto e sentir as lágrimas que provam a existência de algo maior do que a condição animalesca da sobrevivência. Será tarde demais. Talvez ainda consiga que leias nos meus lábios a palavra curta que expressa tudo o que em dentro de mim concedeste existência e que o tempo (ou a minha falta de coragem para ser homem) me impediu de te devolver. Não saberei como te levar comigo para o outro lado porque toda a luz te pertence e em mim apenas tenho o sopro do inverno que nada deixa aceso. Perdoa-me todos os dias que foste tu e tu sempre a reacender-te para mim e eu ignorei que podia haver um lado iluminado dentro do mundo que eu persisti em cobrir de nuvens escuras carregadas de falta de vontade de ser pouco mais do que nada. Será ao teu lado que sentirei a saudade de estar quando a minha imagem não for mais do que um passado que ficou para trás, desbotada pela humidade no fundo de uma gaveta. Regressa ao lado da vida enquanto ainda é tempo de a sentir completamente tua.

domingo, 15 de abril de 2012

moribunda, a casa.

E tudo o tempo levou. Infame e maldito, sem medo e sem pressas, levou consigo o que quis, quem quis, como e quando lhe apeteceu.
Foram-se as noites e dias de natal, em que a mesa onde cabiam dez servia quarenta ou cinquenta, mais vizinhos.
Em que as árvores de natal eram pinheiros mal cortados e roubados da terra do primo à última hora e o anfitrião da casa, o pai, era pior que os mais novos e roubava os relógios para antecipar a meia-noite, só para poder dar e receber as prendas.
Prendas essas, que por falta de dinheiro, limitavam-se a cartas e desenhos, a pedras pintadas, a bonecos de palha, trapos e caixas enormes sem nada lá dentro, no fundo, pequeno e adorável lixo, mas sempre muito bem embrulhado, porque o natal naquela casa era os embrulhos e os enfeites.
O pai natal de vermelho era lhes um estranho, pois não havia tanta comercialização do natal, e a filha mais velha quando ouvia sons no sótão durante a noite natalícia, que provavelmente eram ratos muito metidos na sua pacata e complicada vida, julgava que era o menino Jesus a descer pela chaminé com as prendas. E os enfeites eram algo de outro mundo, muito improvisados e um pouco aldrabados, de tons vermelhos e dourados. E as fitas, essas eram em farta e de toda a espécie, coladas ao tecto, coladas à lareia, nas cadeiras e nos móveis, eram tantas e de tantos feitios que mais parecia Carnaval do que Natal.
Foram-se os dias de Páscoa, em que vinha o padre com Jesus na cruz para se beijar, e que ninguém podia comer carne. Mas isto era tudo coisas da avó, a religiosa da casa. Os outros esperavam que ela fosse dormir, que chegasse a meia-noite e que acabasse o jejum de carne para se ir matar o porco e comer umas boas febras pela calada e às escondidas.
Foram-se também as grandes festas de aniversário, em que nunca se sabia bem quem era o aniversariante no meio de tanta gente. As jantaradas e almoçaradas aos fins-de-semana. A boa disposição, as anedotas porcas e às vezes labregas, e as outras muito bem pensadas, as palhaçadas e disparates, as partidas em que todos alinhavam, as loucuras, as confusões, as discussões e os conflitos resolvidos com abraços e terminados com o perdão.
Foram-se os bisavôs. O avô. A avó. Os tios, os primos, os cunhados. O pai.
Para trás, ficou a casa.
A casa e os que não morreram. Uma casa onde viveu gente, descansou gente, morreu gente e fornicou gente. Palco de algumas tragédias mas inúmeras comédias. Agora é de todos e não é de ninguém. Está abandonada, sem dono, quase esquecida. Perderam-se as chaves e as portas estão arrombadas de tanta vez que foi saqueada. Todos a querem mas ninguém luta por ela. Ficou decadente, moribunda, já não há festas, não há alegria. Há o nada.

domingo, 8 de abril de 2012

um fado mal contado

Ele vivia num mundo à parte, noutra realidade, noutra dimensão. Era um louco, feliz, gingão, fala-barato, tagarela, chato, sem papas na língua, de pensamentos bizarros, ideias anormais e paranormais, dançava na rua, vivia na lua, muito senhor do seu umbigo, sempre de ar leviano e nada contido.
Mas tudo o que é bom, não dura para sempre, e a sua vida deu meia volta, caiu no chão, bateu com a cabeça, foi esfaqueado nas costas, gritou de dor, riu-se de horror, fugiu com pavor e durante algum tempo, viveu sem esplendor.
Surgiu escondido na forma de um sorriso, que sempre lhe passara despercebido. Suavemente e devagar, pela calada, insinuando-se primeiro, inchando-se depois, todo arrogante, pimpão e presunçoso. Era amor. Era ilusão. Enfeitiçante como a lua cheia mas tão terrível como um exército pronto para a mais sangrenta das batalhas. Os dias tornaram-se semanas, as semanas meses. A batida era forte e insuportável. O sofrimento era desgastante. E o sorriso, traiçoeiro mas acolhedor.
No início, não percebeu. Não compreendeu. Era algo novo, estranho. Mas as passadas longas do tempo despertaram-no. O que para ele foi uma pena. Pensou, que fazer? Estava confuso. Pensou outra vez. Tinha a cabeça mil à hora. Mas finalmente parou.
Olhou e aproximou-se, sorrateiramente. Como se um cavaleiro disfarçado. O amor entrou pela porta da frente e a sensatez abalou pela porta traseira.
Calma mas irrequietamente, algum tempo demorou. Chegada altura, exibiu-se e não vacilou.
Mas não conquistou.
E da ilusão acordou.

Contou e recontou a si mesmo que nada daria errado, que seria esse o seu fado, os dois felizes, lado a lado. Só não tinha era percebido, que não passava nada mais de que um fado mal contado.
Ficou calado. Muito contido, deprimido, pelas trevas apoderado, tresmalhado do pensamento, demasiado baralhado. Chorou, chorou, tentou-se apagar mas deu um tiro ao lado. Ficou acamado, durante demasiado tempo para sequer ser mencionado.
No fundo, quem sabe o que pode ter murmurado, a si mesmo e à escuridão, nas amargas vigílias nocturnas, quando de repente viu todo o significado da vida a desaparecer como que num sopro, a sua própria razão de existência a perder o sentido, o acto de respirar a tornar-se inútil. Tudo encolhia, tudo perecia, e sem dar por isso, as paredes do seu quarto começaram a fechar-se sobre si, como uma arca encerando uma fera adormecida. Tudo se tornou sombra, tudo perdeu vida. Acender a luz? Qual luz? Essa há muito que estava apagada. Mas por muito que tenha custado, e que muitas primaveras tenham passado, lá se apercebeu de que se torturava por nada.
Foi despertado da sua amargura e aposentadoria por alguém ainda mais excêntrico que ele. Ela surgiu como a aurora, com uma boa nova. Radiante como os diferentes raios solares, suave, sorridente, calorosa, de olhos escuros como o breu, hipnotizantes, intoxicantes e apaixonantes. Veio galante, trazendo o cheiro de chocolate e o talento de tocar saxofone. De falas e gestos gentis, pura de interior e emanando felicidade, lá trouxe o rapaz, de volta à realidade.
Demorou um pouco mas a paixão lá chegou. Agora vinha verdadeira, com novo ar e melhor dom. Viu-se a luz renascida, um novo sonho, uma melhor vida. Há gargalhadas no ar, o sol a vibrar, há novo sorriso, com gritos de cor.
Vai-te embora desgraça, dá lugar ao amor.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

noite

Julgava ser meia-noite. Caminhava em direcção a casa de costas curvadas, ar abatido e de passadas lentas como se os meus sapatos levassem chumbo. As lágrimas que corriam o meu rosto, numa tentativa de exibir a minha infelicidade e severa tristeza, corriam disfarçadas pela chuva que se fazia sentir intensamente.
Aquela hora da noite, a rua não era segura. Drogados e prostitutas vagueavam pelo bairro. Mendigos abrigavam-se como podiam da chuva e montavam a sua cama de uma noite. Empregados de restaurante fechavam as lojas. E depois de um longo dia de trabalho, finalmente voltavam a casa. E eu, caminhava. Tinha rota e destino, mas não tinha vontade nem desejo, simplesmente queria deitar-me à beira de uma poça, de uma sarjeta, render-me a clichés de deprimidos e abandonados, chorar pela vida, gritar que todos me devem e ninguém me paga, culpar a sociedade, culpar pais, mães, culpar quem tem culpa e quem não tem, mas sobretudo, culpar o amor. Amor. Esse sentimento ridículo e sem graça. Irresistível num dia, impossível nos outros. Deixei os meus pés guiarem-me. Detestava lojas de conveniência mas encontrar uma era mais que conveniente. Perfeito. Uma garrafa de vodka, Martini. Qualquer coisa. Bastava-me isso, a estrada e um camião.