quarta-feira, 25 de julho de 2012

Inacabado.

Dois homens encontram-se. Um ainda a atravessar o vigor da juventude, outro velho, que há muito tempo se tinha despedido dessa fase de vida encantadora. O jovem trazia um bloco de notas e um gravador. Entraram numa pequena casa. Travaram uma pequena conversa de circunstância, falaram sobre o tempo, sobre desporto, sobre a crise económica, sobre assuntos e assuntos. A conversa foi fluindo e evoluindo de tom, perdendo o ar formal, ganhando um tique familiar e de troca de experiências:
 - Quem corre por gosto não cansa - disse pousando a chávena de café em cima da mesa.
- Sabes, até as pessoas que correm por gosto um dia se cansam. Quando, e se, esse dia chegar, devem atirar-se de uma janela. Ou de uma ponte. O método pouco ou nada importa. Ou então devem pedir a reforma e aposentarem-se na sua pequena e rústica casa de campo. Se não tiverem casa de campo que arranjem uma. Agora tu se tiveres que escolher entre estas duas opções, recomendo a segunda, não me apetece ser acusado de incentivar o suicídio.
 - Estás a ser demasiado generalista. Se eu ficar cansado de fazer uma coisa de que gosto, descanso e retomo no dia a seguir.
 - Eu falo da exaustão psicológica. Quando te cansares de fazer o que gostas, é porque deste o que tinhas a dar e se insistires em continuar a faze-lo, o que será bem provável, estarás a enganar-te a ti próprio. Falo de estares saturado. De deixares de gostar. Falo de te sentires ultrapassado. E por muito que te recomendem férias, vais insistir que é uma fase e vais insistir e insistir. O azar de quase todos nós, ou teimosia, o que lhe quiseres chamar, é que por mais conselhos que nos dêem, nós faremos quase sempre o contrário. Parece que gostamos de dar com a cabeça na parede. Diverte-me quando dizem que as pessoas são inteligentes, e que o ser humano é o ser racional. Somos todos controlados por sentimentos e emoções, pela vontade própria. Onde é que está a racionalidade? Se não fazemos o que queremos, sofremos até ao final dos nossos dias, com amargura, tristeza e arrependimento. E ainda torturamos quem está à nossa volta. Somos egoístas. Geralmente quando estamos mal, queremos que as pessoas saibam que estamos mal. E muitas são as vezes que decidimos partilhar o nosso mal com outros. Estou mal, tu estás bem? Então fica mal agora. Adoramos particularmente culpar os outros das nossas más escolhas e sofrimentos. Isto é maldade? Normalmente nem por isso, somos nós a reagir às coisas que não correram como queríamos.
 - Bem mas muitos não fazem o que querem e no entanto...
 - No entanto nada. A maior parte das pessoas não fazem o que querem. E vivem infelizes, vazios até ao fim dos seus dias. Tentam disfarçar essa infelicidade com festas, com saídas. Mas toda a santa noite, por melhor que o dia tenho corrido, vão chorar para cima da almofada, e mesmo que não se afoguem nas suas próprias lágrimas, lamentam as escolhas que tomaram e desejam voltar atrás no tempo. Vivemos rodeados de infelicidade, mete isso na tua cabeça. Os que fazem o que não querem, se são felizes é porque encontraram o amor, mas mesmo esse é um sacana traiçoeiro. Ou então tiveram filhos. Mas como já te disse, temos necessidade de culpar tudo e todos. No meu caso, cansei-me simplesmente de fazer o que queria. Deixou de me dar gozo. Hoje estou aqui, aposentado e sossegado, no meu pequeno refúgio. Escolhi a vida. É demasiado curta e fria para lhe virarmos as costas e desistirmos à primeira dificuldade. Agora estou calmo. Pacífico. Feliz com a minha vida? Nem por isso. Estou farto de tanta monotonia. Estou a pensar em preparar uma viagem a África, mas com as minhas manias de brincar com racismo, penso que seria imediatamente assassinado. Mas a verdade é que só me aposentei, porque senti que tinha chegado a minha hora. Eu estava farto e ultrapassado. E nem todos têm essa capacidade, a de reconhecer que chegou o seu momento. Há pessoas que parece que adoram agarrar-se ao passado. Por mais que não queiramos, todos caímos, todos deprimimos, todos choramos, todos sofremos, todos somos miseráveis pelo menos um dia na nossa vida. Venha de lá o gato mais pintado dizer o contrário. E muitas vezes acontece por vontade própria. Só não sofre quem se limita a viver a vida sem estar virado para os problemas e necessidades dos outros. É preciso tomates para isso. Eu nunca tive. Sempre achei que estamos aqui para nos ajudarmos uns aos outros, mas também para fazermos maldades, por mais simples e modestas que sejam. Ninguém gosta de paz durante muito tempo. É aborrecida. E não só, vida sem sofrimento também é monótona e enganadora. Faz-nos voltar à terra, cada vez que caímos. Sinceramente, eu acho que tive sorte. E mais que tudo agradeço a mim próprio e às minhas decisões. Tive amigos que lutaram e lutaram contra tudo e contra todos mas que não conseguiram o que queriam e foram espezinhados pela vida. Acabaram por desistir. Outros ainda tentam. Mas a sorte não lhes bate à porta. Eu tive a possibilidade de ser genuinamente feliz. E aproveitei e vivi extremamente bem. Mas cansei-me. Tornou-se demasiado desgastante. E agora aqui estou, sentado na minha cadeira a fazer o que nunca pensei que chegaria a fazer. Falar da minha experiência de vida, como se fosse muita. Dá-me vontade de rir. Tenho um humor estranho, mas divirto-me sozinho.
 - Viver tantos anos dá-lhe, inquestionavelmente, experiência de vida.
 - Isso foi a maior barbaridade que já disseste. Eu podia chegar até aos 150 anos e não saber nada de nada da vida. Fui-me safando e tive sorte. Tive pais que me adoraram mas que me acomodaram, tive uma infância facilitada mas feliz. Acomodei-me algumas vezes na vida e paguei caro. Muito caro. Mas aprendi com os erros. Consegui corrigir alguns, outros ainda estraguei mais, como tudo. Agora experiência de vida? Nem por isso. Acabo por ser um mero observador do mundo que o rodeia, um homem que se contraria facilmente, um homem infeliz mas que em tempos foi feliz. Mas de pouco ou nada me arrependo. Isso custaria tempo, que tenho, mas que prefiro gastá-lo a ver programas de baixo custo na televisão, ou a falar com os meus vizinhos sobre os problemas dos outros. Acima de tudo, deixei o extraordinário para trás porque estava velho e cansado e tornei-me algo que nunca pensei em tornar-me, mas que era a única hipótese que eu tinha. Tornei-me banal. É o que espera a quem sabe que chegou a sua hora. Agora espero o fim, muito sossegado, na minha vida pacata e mundana, para poder recebe-lo de braços bem abertos e para o abraçar. Depois, depois acabou. Serei um vulto na história. Alguém esquecido. Mas o pequeno papel que eu tinha na vida e no mundo, de mero peão de peões, desempenhei-o. Agora sou um peso. Mas não o serei por muito mais tempo.

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